Trabalho degradante na área têxtil é tema de reportagem do O Globo
Salário mensal era R$ 160, valor que era devolvido para saldar a dívida contraída com a compra da passagem de ônibus para São Paulo, contra trabalhadora boliviana "libertada"
Escrito por: CNTV CUT • Publicado em: 05/06/2013 - 14:51 Escrito por: CNTV CUT Publicado em: 05/06/2013 - 14:51Edição do dia 4 de junho passado do jornal O Globo traz reportagem sobre o trabalho escravo no setor têxtil. Confira abaixo:
Cerco ao trabalho degradante na área têxtil se fecha no Brasil
Especialistas apostam no poder de pressão do consumidor e sites ajudam a identificar abusos na cadeia produtiva
Marisa (nome fictício de uma boliviana de 38 anos) deixou tudo para trás quando trocou Potosi, uma das cidades mais altas do mundo (3.967 metros de altitude), pelo Brasil: filho, pais e emprego de digitadora da Justiça Eleitoral local. O baixo salário, de dois mil bolivianos (que hoje valem cerca de R$ 588,80) por mês, e a instabilidade no emprego motivaram a mudança para o Brasil. Ela migrou sem dizer para onde ia. Contou aos pais simplesmente que tinha sido convidada para integrar um projeto da Justiça Eleitoral em outro estado da Bolívia.
Marisa chegou a São Paulo em 2010, depois de ouvir um anúncio numa rádio da sua cidade natal, que dizia haver vagas para pessoas que soubessem ou não costurar. A primeira impressão ao chegar não podia ter sido melhor: “um país lindo e gigante”. Só que, contratada por bolivianos para trabalhar como costureira na capital paulista, Marisa acabou engrossando, indiretamente, as estatísticas oficiais do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, no segmento de vestuário.
No ano em que ela chegou ao país, os fiscais da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), resgataram 2.628 trabalhadores, entre urbanos e rurais. No ano seguinte, outros 2.491 foram libertados, entre eles algumas costureiras como Marisa, que trabalhavam em oficinas que vendiam produtos para redes, como a espanhola Zara, do grupo Inditex — gigante do segmento da moda. Seu dono é o multimilionário Amâncio Ortega, que consta da lista dos homens mais ricos do mundo.
— Fui tratada como escrava, como um animal — lembra Marisa, que, depois de se recusar a trabalhar, ameaçar pular a janela e implorar para sair, acabou recebendo “autorização para ir embora depois”.
O calvário começou ainda na viagem para o Brasil, que Marisa fez na companhia de outros seis bolivianos, entre eles um bebê.
Mesmo tendo sido informada pelos futuros patrões que não precisava levar dinheiro, Marisa, precavida, colocou R$ 200 na bolsa, que acabaram sendo entregues na fronteira, em Corumbá (MS). Após quatro dias de viagem, Marisa desembarcou em São Paulo e foi levada para uma casa — misto de moradia e oficina de costura — onde moravam outras 12 pessoas (sendo três delas crianças). Eles dividiam três quartos e disputavam um único banheiro. Banho, lembra, era permitido apenas três vezes por semana e, ainda assim, sempre de água fria:
— Dormia num quarto com um casal e uma criança, filha deles. Chegamos na cidade num sábado e, no domingo, a pessoa que nos contratou informou que precisávamos começar a trabalhar imediatamente. Se parávamos para ir ao banheiro, a dona da oficina falava que as nossas necessidades podiam esperar e que o serviço era para aquela hora.
Marisa diz ter passado fome e comido alimentos estragados.
Permissão para sair de casa ela só recebeu depois de um mês trabalhando sem parar. A jornada começava às 7h, duas antes do desjejum, e seguia até às 23h, com rápidos intervalos para almoço e um lanche, à noite. Caso não terminasse o serviço, era obrigada a trabalhar até às 2h da madrugada. Ao final de um mês de trabalho, R$ 160 de remuneração, que Marisa diz ter sido obrigada a devolver para saldar a dívida contraída com a compra da passagem de ônibus para São Paulo.
Cerceamento do direito de ir e vir, jornada de trabalho intensa e servidão por dívida são alguns dos abusos aos quais Marisa foi submetida. Sua trajetória não é um caso isolado. Escândalos envolvendo trabalhadores em condições análogas ao trabalho escravo a serviço de marcas renomadas do mundo da moda vêm manchando a imagem de empresas do setor globalmente.
O caso mais recente no Brasil, depois da Zara, ocorreu em março último quando os fiscais do MTE flagraram, a poucos quilômetros de distância do São Paulo Fashion Week, 29 bolivianos trabalhando em confecções clandestinas na Zona Leste da cidade. Eles trabalhavam para o grupo GEP, dono da Cori, e recebiam R$ 4 por peça confeccionada. A jornada era de 12 horas diárias.
Lista suja
— Nem a Zara nem a GEP foram incluídas na lista suja do trabalho escravo. O processo não é automático, e, de tempos em tempo,s ele vai sendo atualizado. É feita uma pesquisa minuciosa. Há um grande levantamento de dados para estudo do caso e das denúncias. Neste período, o ministério dá chances às empresas para cumprirem a legislação. Cabe ao empresário colaborar com a lei — esclarece Daniel Santini, um dos coordenadores da ONG Repórter Brasil, entidade que auxilia a Organização Internacional do Trabalho (OIT) no levantamento de dados sobre esse assunto, assim como o MTE.
A Zara afirma que já tomou diversas medidas para contribuir com a eliminação de práticas trabalhistas irregulares na sua cadeia produtiva. De janeiro de 2012 a abril de 2013, já foram realizadas 562 auditorias em oficinas terceirizadas. A empresa alega que também prestou auxílio à regularização migratória de 13.700 pessoas e criou um fundo de emergência para atender vítimas do trabalho escravo, onde foram registrados 40.127 atendimentos. O disque-denúncia foi outra medida que a Zara Brasil implementou, assim como a criação do serviço 0800, com atendimento trilíngue (português, espanhol e inglês) para receber também denúncias gravadas.
Os executivos da GEP, por sua vez, assumiram a responsabilidade, pagaram indenização de R$ 25 mil por cada trabalhador libertado e mais R$ 450 mil ao MTE e entidades de combate ao trabalho escravo e degradante. A imagem das marcas, no entanto, foi manchada e as empresas estão lutando contra o tempo para não repetirem o caso Nike, o maior fabricante de artigos esportivos do mundo, que sofre até hoje os efeitos do escândalo dos anos 90, quando veio a público a exploração de trabalho infantil em uma de suas fábricas.
— Os consumidores têm o poder de compra e podem questionar as empresas das quais estão comprando sobre escravidão. Eu acho que a maioria das pessoas não quer algo feito por meio de trabalho escravo — avalia a ex-CEO da Ford Models e presidente da ONG Freedom for All (Liberdade para Todos, na tradução em português), a americana Katie Ford, que esteve em São Paulo em meados de maio participando de seminário para discutir o trabalho escravo contemporâneo.
Poder do consumidor
Na perseguição ao trabalho escravo, a ONG Slavery Footprint desenvolveu um site onde se pode descobrir quantos trabalhadores escravos estão envolvidos na cadeia produtiva dos produtos que fazem parte do “estilo de vida” de cada um. Através do endereço slaveryfootprint.org é possível obter o número de pessoas que podem trabalhar em condições análogas ao trabalho escravo em determinados segmentos, como vestuário, alimentação, cosméticos e eletrônicos. As duas repórteres que assinam essa reportagem teriam juntas 185 escravos. Caso fossem consumidoras de produtos de tecnológicos de última geração, muito provavelmente esse número dobraria.
E se o assunto é transparência no processo, a empresa belga Honest by oferece suas pesquisas de matérias-primas e serviços para garantir que a produção seja mais sustentável e menos agressiva ambientalmente. Nele, o consumidor acompanha o processo de produção, da plantação do algodão, por exemplo, até a peça chegar nos pontos de venda.
— Não há investidores, somos uma empresa privada. No futuro, gostaríamos de crescer para que mais pessoas possam tomar decisões conscientes sobre a roupa que estão comprando, na verdade, antes de comprar. É um projeto revolucionário no universo da moda, acreditamos que somos a única empresa 100% transparente — diz Martijn van Strien, gerente geral da empresa.
São Paulo, que costuma ser palco das fiscalizações no setor de moda, entrou na briga.
— Temos que estar atentos às novas formas de exploração de trabalho e proibir situações aviltantes, que criam concorrência desleal. A maior sanção é a proibição de exercer a atividade. São Paulo deu o primeiro passo e esperamos que os demais estados façam o mesmo — anunciou recentemente o governador Geraldo Alckmin, que assinou uma lei que prevê o fechamento das empresas denunciadas.
O boicote dos consumidores e as medidas restritivas adotadas pelo poder público são parte do cerco ao trabalho escravo, que conta ainda com o poder de pressão dos próprios investidores.
— O maior impacto real nesses casos não é a perda de consumidores devido a boicotes, porque a memória da população é feito fogo de palha, mas o temor de que investir em determinada empresa seja arriscado — avalia Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil. — As quedas de ações não são perenes, nem duradoras. Quando acontece o problema, elas caem, mas logo se recuperam. Só que isso não importa. Mesmo que as ações voltem a subir, o importante é que houve uma queda por conta de um grave problema ligado aos direitos humanos.
A repercussão do caso da Zara, por exemplo, cruzou o Atlântico e, nos dias que se seguiram ao escândalo, ações da empresa caíram 3,72% na Bolsa de Madri, tendo chegado a recuar 4% no pico.
Enquanto as empresas se enquadram, alguns consumidores já começam a lançar mão do seu poder de decisão para punir os infratores. É o que salienta o procurador-geral do Trabalho no Brasil, Luís Camargo, que está convencido de que “se a classe média captasse o recado, seria uma revolução”:
— Um dia desses estava indo tomar um chocolate quente com minhas filhas num shopping em Brasília e presenciei uma cena que me emocionou. Passávamos em frente uma loja da Zara e um rapaz, que caminhava com a namorada, disse para ela não comprar naquela loja porque a empresa usa trabalho escravo.
Esse tipo de irregularidade e uso de mão de obra infantil são dois assuntos recorrentes nos estudos da carioca Lilian Berlim, autora do livro “Moda e sustentabilidade”:
— Nesse momento, existem 100 milhões de pessoas no mundo plantando, regando, pulverizando, descaroçando algodão, tecendo, cortando, tingindo, costurando, bordando, tricotando, empacotando e vendendo roupas. Não se sabe ao certo quantas dessas pessoas trabalham em condições degradantes e quantas delas são crianças.
O coordenador de Combate ao Trabalho Escravo da OIT no Brasil, Luiz Machado, está convencido de que o consumidor tem todas as condições de pressionar as empresas a mudarem de postura:
— Muitas pessoas não têm essa preocupação, querem apenas, no final das contas, pagar pouco, não importa o crime que está por trás do produto comprado. Não sei se o boicote a empresas é o caminho certo, mas com certeza é possível fazer uma pressão. O consumidor dita as regras do mercado.
Nike vira o jogo para limpar imagem
A lição amarga que a Nike aprendeu desde o fim dos anos 90 serviu para que a empresa se baseasse na transparência durante os processos de produção. A empresa hoje não fala em reposicionamento.
— O interesse da marca não é de se reposicionar. Temos uma obsessão por ser transparentes e sustentáveis, o reposicionamento é algo que vem com o tempo — diz o porta-voz da empresa no Brasil, Mario Andrada, comentando a polêmica que prejudicou a imagem da empresa, quando esta foi associada ao episódio em que crianças asiáticas trabalhavam para confeccionar produtos em oficinas terceirizadas, em 1997.
Segundo ele, o caso serviu para nortear as diretrizes que levaram a empresa a mudar sua imagem perante os consumidores.
— A Nike nunca foi acusada de trabalho escravo. O que aconteceu na década de 90 foi que a empresa descobriu que havia mão de obra infantil sendo usada. O que é bem diferente de trabalho escravo — diz Andrada.
Ele conta que naquela época a Nike não tinha percebido a importância de aumentar o nível de transparência nos processos:
— Na verdade, ela nem sabia que o problema exista. Foi uma lição importante. Acima de tudo, entendemos que não bastava ser uma empresa que prega a sustentabilidade. Empresas que não são sustentáveis tendem à extinção.
O primeiro passo foi estreitar o relacionamento com fornecedores. Principalmente na questão trabalhista, que abrange responsabilidade e justiça sociais.
— Estabelecemos o controle absoluto da terceirização. Assim como medidas que contam com a contribuição de todos os envolvidos na cadeia, fornecedores, trabalhadores e sindicatos. Conseguimos pensar em ideias inovadoras para solucionar problemas como abuso de hora extra e moradias precárias. Há situações em que precisamos até interferir na troca das telhas das casas dos trabalhadores. Estamos fiscalizando todos os passos— revela Andrada.
Mais que responsabilidade social, a empresa tem a meta de chegar ao impacto ambiental zero no ano de 2025. A ideia é não utilizar mais nada do planeta e, quando for necessário, devolver os recursos naturais em curto prazo.
— As camisas da Seleção Brasileira de Futebol, são totalmente sustentáveis. Abrimos isso para a concorrência. Eles também podem usar a nossa fórmula — diz Andrada.
As iniciativas são bem avaliadas pelo consultor e analista de mercado Nelson Barrizzelli, doutor com especialização em Finanças e Marketing pela Universidade de São Paulo. Ele reitera a importância da empresa trabalhar com transparência:
— A Nike é um bom exemplo. Ela foi afetada seriamente a respeito dos boatos de mão de obra infantil. Levou anos para se livrar do estigma, mas, assumiu uma postura de mudança. Apesar de muita gente nem lembrar mais, investiram e assumiram o compromisso de transparência. Não há outro caminho.
Fonte: O Globo