E se fosse a lama da Petrobras na praia de Ipanema?

23/11/2015 - 13:28

Impacto da barragem destruída causa uma "Escola Base" às avessas. Imprensa brasileira perde ímpeto acusatório quando casos emblemáticos envolvem as elites econômicas

Rede Brasil Atual

A maior catástrofe ambiental do século 21 no Brasil ganha novo ícone com a chegada da lama da Samarco (Vale, BHP) no Oceano Atlântico. Mas quem se importa com a avalanche gosmenta de resíduos na Praia de Regência, no Espírito Santo? Em um litoral que o biólogo André Ruschi define como “a Amazônia marinha do planeta“? Pouco após a barragem da mineradora se romper, no dia 5, houve quem perguntasse, diante da desatenção inicial da grande imprensa: “E se fosse com a Petrobras?” Cabe agora atualizar a pergunta: “E se essa lama estivesse chegando na Praia de Copacabana? Ou Ipanema, Leblon, Barra? Ganharia a capa de Veja?”

 

As revistas seguem alienadas. Tivemos três fins de semana após o crime socioambiental, ocorrido no dia 5 de novembro. Nem por isso o tema mereceu alguma manchete de Veja, Época ou IstoÉ. Claro que o tema está lá, mas de forma protocolar. Os jornais até acordaram um pouco, diante da viralização do tema na internet. E estão cumprindo (ainda que em fragmentos, com peças isoladas de um quebra-cabeças) parte de sua função. As nossas revistas panfletárias, porém, não estão interessadas em contar à nossa classe média distraída – mas contar com todas as letras – que estamos diante de um dos episódios mais emblemáticos deste nosso capitalismo sôfrego, particularmente inconsequente. E violento.

 

Sim, as mineradoras fazem estragos por todo o mundo. Inclusive a Vale e a BHP, as maiores ao lado da Rio Tinto. O que não nos impede de constatar que as nossas publicações tipicamente vestais (essas que fazem capas sobre corrupções específicas de grupos políticos específicos) estejam tratando o caso de Mariana de forma secundária, como se fosse um detalhe – um desastre renovável. A Globo multiplicou os minutos sobre as mortes na França e parece sem fôlego para manter a catástrofe brasileira no noticiário. Mas não é só isso. Há um problema de postura. Não veremos o William Waack espumando por causa dos povoados arrasados e das espécies extintas. Não veremos analistas econômicos conectarem as vidas destruídas de pescadores (ou camponeses) à doce vida dos sócios da Vale.

 

E, portanto, no que se refere ao ambiente, o jornalismo brasileiro ganha a sua Escola Base. Mas às avessas: por falta de acusação, por falta de ímpeto de não somente constatar a responsabilidade da Samarco (Vale, BHP), mas constatar com a capacidade exclamativa que demonstra em outras situações. E sem que haja esforço de costurar uma narrativa maior, de questionar um sistema predador, que libera nossos recursos naturais para o saque bilionário por um punhado de empresas, livres para acumular (com fartas isenções fiscais) e poluir. Sem que se nomeie com todas as letras o partido – o PMDB – que controla o setor da mineração no país, amplamente financiado pelas próprias mineradoras. Quantas vezes o leitor ouviu o nome do PMDB em meio a essa lama toda?

 

Demonizações seletivas

A Escola Base foi aquele caso em São Paulo em que donos de uma escola infantil foram acusados de abuso sexual. A imprensa foi histérica a respeito (imaginem se o acusado fosse o dono de uma rede gigantesca de escolas privadas) e teve de fazer, tempos depois, um mea culpa: eles eram inocentes. Um mea culpa que simplesmente não é feito em relação aos linchamentos diários, espalhados por todo o país, de acusados – pobres, negros – de outros tipos de crime. A imprensa brasileira ainda é protagonista de espetáculos medievais de demonização de indivíduos, satanizações de acusados que servem também para justificar o tratamento excludente a grupos sociais inteiros. “Eles que não invadam nossa praia”.

 

E, no entanto, essa imprensa não se move (ou se move em círculos, sem ser incisiva) quando os suspeitos ou criminosos têm colarinho branco, CNPJ e gigantescas equipes de marketing. Briga com o porteiro, nunca com o patrão. Nossa elite não será algemada nem tratada como escória. Nem que seja ela a responsável por poluição ambiental e roubo de terras, destruição de biomas e especulação financeira assassina, nem que patrocine a crise, seja ela mesma a crise, nem que ela seja notoriamente atrasada (ou mais despudorada) em relação às demais elites do capitalismo mundial – porque ainda mais cínica e impune. Os cárceres estarão cada vez mais entupidos dos pequenos traficantes de drogas. Teremos 1 milhão de presos, 1 milhão de inimigos convenientes.

 

Estamos no país onde a ministra da Agricultura vai à Ásia e se deslumbra com mármores e tapetes, em uma missão oficial para promover o agronegócio brasileiro, esse agronegócio primo da mineração predadora, ambos a esmagar as florestas restantes, os povos indígenas e as populações tradicionais. E lá estava ela na Índia, toda alegre e intensa, vendendo as supostas maravilhas de uma nova fronteira agrícola, a do Matopiba (Maranhão-Tocantins-Piauí-Bahia), onde a família Marinho tem terras e onde o Cerrado ganha sua destruição diária, com o aval de governo e oposição, sem holofotes, sem proteção legal, sem lama, sem espetáculo – sem uma narrativa, uma cobertura diária que ao menos coloque em dúvida esse modelo, essa lógica.

 

Uma das coisas mais curiosas da imprensa brasileira a serviço da plutocracia é que ela não se dá conta de nossos rombos socioambientais nem quando o PT também deixa ali sua assinatura, nem quando o governo federal que fustigam tenha papel importante nessa destruição. A não ser que pretendam desprestigiar uma estatal. Porque o que querem é apenas colocar outro grupo político no poder, uma espécie de política de substituição de destruições, de preferência sem algum verniz compensatório, alguma inclusão em meio à implosão. É por isso que as próximas capas da Veja vestirão como presidiários apenas aqueles que a revista julgar convenientes; nunca os plutocratas com pedigree. Latifundiários da comunicação a minimizar a dor de multidões e a sacralizar o ódio das minorias. Em nome de seus pais, de seus filhos e apesar da lama no mar do Espírito Santo.

 

Alceu Luís Castilho é jornalista e autor do livro “Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro”